terça-feira, 30 de junho de 2009

Tema Antigo - Murilo Mendes

(Imagem: Giovanni Boldini)

Vestindo as nuvens órfãs,

Esticando a pedra eterna,
Dando às fontes de beber,
Eu consagrei o universo.

Alimentei até os sonhos,
Dialoguei com a esfinge móvel,
Fiz florescer o deserto.
Quando vi, não era nada,
Me apalpei, formas se riam
Fugindo ao meu esqueleto.

Foi então que vi o amor
Colado aos braços da morte
Montar no cavalo azul:
A solidão sem ornatos
Me apresentou a mim mesmo.



sexta-feira, 12 de junho de 2009

Soneto - Nuno Júdice

(Imagem:Picasso)

Lábios que encontram outros lábios
num meio de caminho, como peregrinos
interrompendo a devoção, nem pobres
nem sábios numa embriaguez sem vinho

que silêncio os entontece quando
de súbito se tocam e, cegos ainda,
procuram a saída que o olhar esquece
num murmúrio de vagos segredos?

É de tarde, na melancolia turva
dos poentes, ouvindo um tocar de sinos
escorrer sob o azul dos céus quentes,

que essa imagem desce de agosto, ou
setembro, e se enrola sem desgosto
no chão obscuro desse amor que lembro.

domingo, 7 de junho de 2009

Topografia

(Imagem: Milo Manara)

Sabes de cor dos meus livros, de cada página amarelada. Frase a frase, palavras que esquadrinhas com olhos ávidos e dedos ágeis de arguto aluno. Sabes de mim, da minha geografia, geologia e ramos de ciências afins.
Conheces as camadas mais superficiais e mais profundas da pele dos meus vastos continentes. Sabes das minhas terras insulares e úmidas, do meu relevo plano e acidentado em terra e mar.
Sabes como escalar montanhas e montes para descansar exausto nas sombras das encostas.
Sabes do solo macio e quente dos meus desertos e como sobreviver bebendo dos meus oásis que sombreias com tuas palmeiras mãos. Sabes das minhas terras altas, dos meus vales férteis.
Sabes das minhas vibrações sísmicas e das escalas dos meus grandes terremotos. Sabes dos meus vulcões adormecidos e ativos quando queima a lava em ebulição, o fogo líquido.
Sabes das minhas zonas de alta pressão, das brisas  marítimas/terrestres, dos ventos alíseos e de como aqueço os seus minuanos, dos meus tufões, vendavais e tornados.
Conheces a minha hidrografia e os meus lençóis freáticos, todas as minhas águas, frias e cálidas, doces e salgadas. As chuvas calmas e as tempestades.
Conheces os meus abissais oceanos e tsunamis. As minhas correntes quentes e os meus el niño's, minhas praias e a arrebentação das suas ondas de branca espuma na areia. Sabes das minhas cachoeiras e cascatas, das fontes termais e gêiseres.
Sabes dos meus igarapés - açus e mirins -, dos remansos, dos meandros, dos meus rios sinuosos. Sabes dos sons dos seus trajetos, das suas desembocaduras em estuários e fecundos deltas. 
Sabes dos meus plácidos lagos, dos meus cristalinos riachos.
E dos meus silêncios.

Sabes.



sexta-feira, 5 de junho de 2009

Estudo nº 6 - Murilo Mendes

(Imagem: Boris Vallejo)

Tua cabeça é uma dália gigante que se desfolha nos meus braços
Nas tuas unhas se escondem algas vermelhas
E da árvore de tuas pestanas
Nascem luzes atraídas pelas abelhas.

Caminharei esta manhã para teus seios
Virei cimento de orvalho da madrugada
Do tecelão que tece o fio para teu vestido.
Virei, tendo aplacado uma a uma as estrelas.
E, depois de rolarmos pela escadaria de tapetes submarinos
Voltaremos, deixando madréporas e conhas
Obedecendo aos sinais
precursores da noite
Para a grande pedra que as idades balançam á beira-nuvem

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Una carta de amor - Julio Cortázar

(Imagem: Leonid Afremov)
Todo lo que de vos quisiera
es tan poco en el fondo
porque en el fondo es todo,

como un perro que pasa, una colina,
esas cosas de nada, cotidianas,
espiga y cabellera y dos terrones,
el olor de tu cuerpo,
lo que decís de cualquier cosa,
conmigo o contra mía,

todo eso es tan poco,
yo lo quiero de vos porque te quiero.

Que mires más allá de mí,
que me ames con violenta prescindencia
del mañana, que el grito
de tu entrega se estrelle
en la cara de un jefe de oficina,
(Imagem: Leonid Afremov)
y que el placer que juntos inventamos
sea otro signo de la libertad.

entre vasos vacíos y ceniceros sucios,

qué hermoso era saber que estabas
ahí como un remanso,
sola conmigo al borde de la noche,
y que durabas, eras más que el tiempo,

eras la que no se iba
porque una misma almohada
y una misma tibieza
iba a llamarnos otra vez
a despertar al nuevo día,
juntos, riendo, despeinados.