sábado, 28 de fevereiro de 2009

Salvador Dalí

Corte transversal do poema
Murilo Mendes

A música do espaço pára, a noite se divide em dois pedaços.
Uma menina grande, morena, que andava na minha cabeça,
fica com um braço de fora.
Alguém anda a construir uma escada pros meus sonhos.
Um anjo cinzento bate as asas
em torno da lâmpada.
Meu pensamento desloca uma perna,
o ouvido esquerdo do céu não ouve a queixa dos namorados.
Eu sou o olho dum marinheiro morto na Índia,
um olho andando, com duas pernas.
O sexo da vizinha espera a noite se dilatar, a força do homem.
A outra metade da noite foge do mundo, empinando os seios.
Só tenho o outro lado da energia,
me dissolvem no tempo que virá, não me lembro mais quem sou.


In: MENDES, Murilo. Poesias, 1925/1955. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1959

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Os lamentos - Franz kafka



São as sedutoras vozes da noite: também assim cantavam as Sereias... Não fora de justiça, para com elas, atribuir-lhes o deliberado propósito de seduzir: elas bem sabiam que possuíam garras e nenhum seio fértil, e disso lamentavam-se em altas vozes - mas não tinham culpa de soarem tão belos os lamentos.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Man Ray
Meus olhos têm telescópios
espiando a rua,
espiando minha alma
longe de mim mil metros.

Mulheres vão e vêm nadando
em rios invisíveis.
Automóveis como peixes cegos
compõem minhas visões mecânicas.

Há vinte anos não digo a palavra
que sempre espero de mim.
Ficarei indefinidamente contemplando
meu retrato eu morto.


MELO NETO, João Cabral de. O cão sem plumas. In: Pedra do sono (1940-1941). Rio de Janeiro, Alfaguara/Objetiva, 2007. p. 23.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

(imagem:by me)

Presença
Mário Quintana

É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas,
teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento
das horas ponha um frêmito em teus cabelos...
É preciso que a tua ausência trescale
sutilmente, no ar, a trevo machucado,
a folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo...
Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.
É preciso a saudade para eu sentir
como sinto - em mim - a presença misteriosa da vida...
Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato...
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te!


segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009


(Imagens:by me)

Canção amiga

Carlos Drumond

Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não se vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.


Eu distribuo um segredo
como quem anda ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.


Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.



Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.

domingo, 22 de fevereiro de 2009

(imagem:by me)
A Esmola de Dulce
Augusto dos Anjos

E todo o dia eu vou como um perdido
De dor, por entre a dolorosa estrada,
Pedir a Dulce, a minha bem amada
A esmola dum carinho apetecido.

E ela fita-me, o olhar enlanguescido,
E eu balbucio trêmula balada:
- Senhora dai-me u'a esmola - e estertorada
A minha voz soluça num gemido.

Morre-me a voz, e eu gemo o último harpejo,
Estendendo à Dulce a mão, a fé perdida,
E dos lábios de Dulce cai um beijo.

Depois, como este beijo me consola!
Bendita seja a Dulce! A minha vida
Estava unicamente nessa esmola.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Soneto - Angelo de Lima



Pára-me de repente o pensamento
Como que de repente refreado
Na doida correria em que levado
Ia em busca da paz, do esquecimento...

Pára surpreso, escrutador, atento,
Como pára um cavalo alucinado
Ante um abismo súbito rasgado...
Pára e fica e demora-se um momento...

Pára e fica na doida correria...
Pára à beira do abismo e se demora.
E mergulha na noite escura e fria

Um olhar de aço que essa noite explora...
Mas a espora da Dor seu flanco estria,
E ele galga e prossegue sob a espora.


sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009


(imagem:by me)

Súplica
Miguel Torga

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009


A Pantera
(Rainer Maria Rilke)

De tanto olhar as grades seu olhar
esmoreceu e nada mais aferra.
Como se houvesse só grades na terra:
grades, apenas grades para olhar.

A onda andante e flexível do seu vulto
em círculos concêntricos decresce,
dança de força em torno a um ponto oculto
no qual um grande impulso se arrefece.

De vez em quando o fecho da pupila
se abre em silêncio. Uma imagem, então,
na tensa paz dos músculos se instila
para morrer no coração

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009


(Imagem:by me)
Depus a Máscara
Álvaro de Campos

Depus a máscara e vi-me ao espelho. —
Era a criança de há quantos anos.
Não tinha mudado nada...
É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que foi
A criança.
Depus a máscara, e tornei a pô-la.
Assim é melhor,
Assim sem a máscara.
E volto à personalidade como a um términus de linha.




domingo, 15 de fevereiro de 2009


Desencanto
Gabriel Archanjo de Mendonça

O sonho realizado
acomodou-se preguiçosamente
na lua da rede
e foi cuidar
por tempo de sesta
na digestão burguesa.

Que o sonho futuro
por mais que sonhado
não passe de sonho.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

(Imagem by me)


Um instante
Ferreira Gullar

Aqui me tenho
Como não me conheço
nem me quis

sem começo
nem fim

aqui me tenho
sem mim

nada lembro
nem sei

à luz presente
sou apenas um bicho
transparente.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

(imagem by me)



Soneto

Nunes Claro.

Vieste tarde, meu amor. Começa

Em mim caindo a neve devagar...

Morre o sol; o outono vem depressa,

E o inverno, finalmente, há-de chegar.



E se hoje andamos juntos, na promessa

De caminharmos toda a vida a par,

Daqui a pouco o teu amor tem pressa

E o meu, daqui a pouco, há-de cansar.



Dentro em breve, por trás das velhas portas,

Dando um ao outro só palavras mortas

Que rolam mudas sôbre as nossas vidas,



Ouviremos, nas noites desoladas,

Tu, a canção das vozes desejadas,

Eu, o chorar das vozes esquecidas.