sexta-feira, 27 de março de 2009

Carpe Diem ( Murilo Mendes In:"Poesia completa")

Munch
Que faço deste dia, que me adora?
Pega-lo pela cauda, antes da hora
Vermelha de furtar-se ao meu festim?
Ou colocá-lo em música, em palavra,
Ou grava-lo na pedra, que o sol lavra?
Força é guardá-lo em mim, que um dia assim
Tremenda noite deixa se ela ao leito
Da noite precedente o leva, feito
Escravo dessa fêmea a quem fugira
Por mim, por minha voz e minha lira.

(Mas já se sombras vejo que se cobre
Tão surdo ao sonho de ficar – tão nobre.
Já nele a luz da lua – a morte – mora,
De traição foi feito: vai-se embora.)



quinta-feira, 26 de março de 2009

O cinzel caído ( Rogério Barbosa Andrade)

Man Ray
Por que, amor, recorres
Ao meu cinzel caído?
Por que vieste a mim
Ignorando a porta que me fechava
Por que puseste tuas bandeirolas
Na minha janela soterrada?

Vieste ter com as raízes
Vieste à minha cama para morrer?
Vieste dividir essa apertada sepultura
Por onde caminho descalço?
Com meu coração de mofo
Ou minha estátua de pétalas queimadas?

Querias te juntar ao meu peito gelado?
Ou que desenhássemos uma casa beijada pelo sol
Perante a qual
Endurecidos os queixos
Choraríamos juntos?

Amor,
De longe eu ouvia o tambor
Que teu passo notívago destoava
E acendi uma fogueira para me queimar
Mas tu vinhas e chegavas
Com uma orquestra rota
E teu instrumento de fogo e sobressalto
Era de água
Teus tambores de quartzo e cortiça
E sol partido
Nas cordas dos violinos
Que minha forca cortejava
Improvisavas sonhos

Mas do meu solar subterrâneo
Te forçaram a sair
E foram meus cães
E eu dormi para sempre
A babar o meu lençol ferido.

domingo, 22 de março de 2009

Intervalo amoroso (Affonso Romano de SantAnna)




O que fazer entre um orgasmo e outro,
quando se abre um intervalo
sem teu corpo?

Onde estou, quando não estou
no teu gozo incluído?
Sou todo exílio?

Que imperfeita forma de ser é essa
quando de ti sou apartado?

Que neutra forma toco
quando não toco teus seios, coxas
e não recolho o sopro da vida de tua boca?

O que fazer entre um poema e outro
olhando a cama, a folha fria?

terça-feira, 10 de março de 2009

O meu Beija flor (Rogério Andrade)

Ela tinha um beija flor
Um risco em vermelho
Uma cintura num colar de ramos
E circulava no pátio secreto em minha casa

Cumpria-me comparecer à sua presença
Cumpria-me mostra-la todos os lugares
Mas no entanto, ela já os conhecia
Ela, que me sabia, dos tempos de antes
Ela, que era a primavera
A sublinhar a procissão dos quintais
Ela, sem nome, sem paradeiro
Ela sem casa
Era minha sombra
Ela, sem reservas
Era o meu quintal.

terça-feira, 3 de março de 2009

Poema olhando um muro (Mário Quintana)

(Klimt)


Do
escuro do meu quarto
- imóvel como um felino, espio
a lagartixa imóvel sobre o muro: mal sabe ela
da sua presença ornamental, daquele
verde
intenso
na lividez mortal
da pedra... ah, nem sei eu também o que procuro, há tanto...
nesta minha eterna espreita!
Pertenço acaso à raça dos mutantes?
Ou
sou, talvez
- em meio às espantosas aparências de algum mundo estranho -
um espião que houvesse esquecido seu código, a sua sigla, tudo...
- menos
a gravidade da sua missão!